domingo, 14 de agosto de 2011

Mutante e imprevisível

Na minha modesta opinião, estas são as principais características de um documentário e este não está fugindo à regra. É um mutante desde o germe da ideia inicial. O projeto publicado aqui é a décima versão de um estalo de vontade de falar sobre um assunto que custou muito para ser organizado coerentemente e materializado em letras. E já que o primeiro post tem um ar de apresentação, vou contar um pouco da história dessa ideia mutante e imprevisível aos que tiverem curiosidade e paciência para ler.

Tudo começou como o “óbvio surpreendente”, numa mesa de bar. De lá, observava outras mesas e apreciava a naturalidade com que todos se juntavam àquele “ritual” de beber. Os frequentadores pareciam tão familiarizados com todo aquele ambiente e seus códigos invisíveis, que era como se aquilo tudo fizesse parte do instinto humano, sequer fosse preciso aprender. Mas aprendi na faculdade, nos livros e na vida que hoje em dia quase nada é apenas instinto no caso dos humanos, afinal, somos um tipo de animal que vive em sociedade, que nos constrói e é construída por nós. Então o hábito de consumir bebidas alcoólicas não pode ser simplesmente “natural do ser humano”, como a necessidade de comer ou tomar água. É possível que buscar um estado de alteração de consciência seja uma necessidade natural do homo sapiens sapiens, mas eleger o álcool como principal meio de se chegar a isso é algo construído e perpetuado por estruturas sociais em detrimento de outros hábitos e outras substâncias que podem levar a resultados semelhantes.


Visão de um dos bares que inspiraram o documentário


Mais do que um hábito, o consumo de bebidas alcoólicas é parte de nossa cultura e envolve uma cultura própria, cheia de especificidades, contradições, regras e simbolismos – e isso tudo, inclusive a estética das bebidas alcoólicas, dos ambientes em que se bebe e das pessoas embriagadas ou abstêmias me fascinava. Decidi que precisava contar essa história, não para chegar a alguma conclusão ou confirmar alguma hipótese, mas para documentar este espaço cultural tão rico e mutante, que tanto influi em nossa sociedade – de maneira positiva e negativa. Inseparável desta decisão, veio a escolha pelo meio audiovisual, uma vez que não via outra maneira de fazer essa documentação, senão simplesmente filmando as pessoas bebendo.

Queria contar a história do hábito de beber entre os paulistas, revisitar suas origens e passear pelas décadas entre umas e outras, além de discutir sua importância atual e para onde parece estar rumando. Mas logo tive os pés puxados de volta para o chão pelo meu orientador e outras pessoas com quem conversei, afinal, era assunto demais pra 30 minutos de filme, corria o risco de não conseguir dar conta de tudo ou de criar uma enciclopédia animada cheia de superficialidade. Definitivamente, não era isso o que eu queria.

Fui incentivada a fazer um “mergulho” no assunto para encontrar um foco, um ponto de conflito latente dentro deste tema que possibilitasse aprofundamento. Pensei em comparar o álcool a outras drogas ilícitas, em ir a um grupo de Alcoólicos Anônimos, em falar apenas dos bares ou contar a história de um bar específico, mas nenhum destes temas me agradou por completo. Fui devorando pesquisas e informações sobre o consumo do álcool no Brasil – é a droga mais consumida e com maior número de dependentes, assustadores 12,3% da população em 2005 – e cheguei à conclusão de que a maior mudança nos últimos anos é que os jovens estão bebendo cada vez mais e estão começando a beber cada vez mais cedo, por volta dos 12 anos de idade.

Decidi então falar sobre álcool e jovens, mas não apenas sobre a geração atual, tentar reconstruir a história da relação das últimas gerações com o álcool também, afinal, os jovens não se formam sozinhos, recebem educação de seus ascendentes. Re-reescrevi o projeto e até montei um pré-roteiro, mesclando depoimentos de bebedores de todas as gerações à discussão de temas específicos do consumo de álcool entre jovens por “especialistas”. Então percebi que continuava querendo abraçar o mundo, afinal as especificidades do tema “álcool e jovens” são diversas e complexas. Novamente, corria o risco de fazer algo muito superficial.

Outra conversa de bar inspiradora

Finalmente, percebi que o que me instigava não eram os problemas envolvendo o consumo de álcool entre os jovens, mas a maneira como e por quê eles bebem, bem como a maneira como e por quê as gerações anteriores bebem e bebiam em sua juventude. As diferentes relações das pessoas com o álcool que coexistem hoje em dia e que, talvez, tenham passado e continuem passando por processos de mudança. Percebi também que não me interessava tanto a opinião de especialistas sobre o assunto, como os depoimentos de pessoas comuns, como eu, que bebem e sabem, ao mesmo tempo que não sabem muito bem o porquê. Me interessa essa contradição e essa pluralidade de olhares sobre algo tão “comum” quanto polêmico.

Por fim, decidi ficar com esta última mutação da ideia (até agora) e, para estruturá-la em uma narrativa, escolhi fazer um filme que seguisse a linha do tempo de um dia em São Paulo – onde à qualquer hora, tem sempre alguém bebendo! Além de buscar bebedores à cada hora do dia, fiz um roteiro de gravação em lugares bem conhecidos entre os paulistanos, mas que reúnem diferentes tipos de público, principalmente, no que diz respeito à faixa etária. Inspirada no documentário “Opinião Pública”, de Arnaldo Jabor, minha missão será dar voz a paulistanos de todas as idades e ocupações para que falem sobre sua relação com o hábito de beber e discutam entre si questões importantes relacionadas a ele, atuando mais como “instigadora” do que como “entrevistadora”. Ao mesmo tempo, buscarei documentar a maneira como as pessoas bebem, como se portam nos bares, os trejeitos, os jogos, os códigos sociais e toda cultura relacionada ao consumo do álcool na cidade.


Esta é a ideia, o projeto e a intenção. Isto até a aparição do componente imprevisível, que só se manifesta na hora da filmagem. Seja bem vindo!

2 comentários:

  1. Não sei o quanto essa porcentagem aumenta no Nordeste mas lá o bicho pega mesmo. É Pitú pra todo lado, purinha, com coca-cola. Quando der vontade ou só no final do dia. Cômico e triste ao mesmo tempo. É engraçado porque a galera toda fica bem feliz e receptiva; a explosão de sociabilidade que o álcool proporciona. Triste porque ver um homem de uns 45 anos tremendo todo e falando bem pouco, só movendo-se mesmo pra dar mais um trago é uma coisa complicada... ouvir falar que se deixar ele vira cinco garrafas num dia... É a maneira do sistema silenciar a opressão.

    Beijos, vou acompanhar.

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  2. Complicado isso mesmo, Carlos!
    Acho esse tema interessante justamente porque o álcool pode passar de vício a virtude num gole só.

    Obrigada pela "audiência"!

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